terça-feira, 25 de março de 2008

Infância em Cabangu


Ser-me-ia impossível dizer com que idade construí os meus primeiros papagaios de papel. Lembro-me entretanto nitidamente das troças que faziam de mim os meus camaradas, quando brincavam de "passarinho-voa".

O divertimento é muito conhecido. As crianças colocam-se em torno de uma mesa, e uma delas vai perguntando, em voz alta: "Pombo voa?". . . "Galinha voa?". . . "Urubu voa?". . . "Abelha voa?"... E assim sucessivamente. A cada chamada todos nós devíamos levantar o dedo e responder. Acontecia, porém, que, de quando em quando, gritavam: "Cachorro voa?"... "Raposa voa?"... ou algum disparate semelhante, a fim de nos surpreender. Se algum levantasse o dedo tinha de pagar uma prenda.

E meus companheiros não deixavam de piscar o olho e sorrir maliciosamente cada vez que perguntavam: "Homem voa?"... É que no mesmo instante eu erguia o meu dedo bem alto, e res- pondia: "Voa!" com entonação de certeza absoluta, e me recusava obstinadamente a pagar a prenda.

Quanto mais troçavam de mim mais feliz eu me sentia. Tinha a convicção de que um dia os trocistas estariam ao meu lado.

Entre os milhares de cartas que me chegaram às mãos, no dia em que ganhei o prêmio Deutsch, uma houve que me causou particular emoção. Transcrevo-a a título de curiosidade:


"Você se lembra, meu caro Alberto, do tempo em que brincávamos juntos de "Passarinho voa?" A recordação dessa época veio-me ao espírito no dia em que chegou ao Rio a notícia do seu triunfo. O homem voa, meu caro! Você tinha razão em levantar o dedo, pois acaba de demonstrá-lo voando por cima da torre Eiffel. E tinha razão em não querer pagar a prenda. O Senhor Deutsch paga-a por você. Bravo! Você bem merece este prêmio de 100.000 francos. O velho jogo está em moda em nossa casa mais do que nunca; mas desde o 19 de Outubro de 1901 nós lhe trocamos o nome e modificamos a regra: chamamo-lo agora o jogo do "Homem voa?" e aquele que não levantar o dedo à chamada, paga prenda.

Seu amigo
Pedro."
Linda infancia de Santos=Dumont em Cabangú - Quando brincava nos locomoveis de seu pai testava seus conhecimentos em mecânica
O Sonho de Voar de Santos=Dumont ficava ainda mais intenso quando soltava suas pipas, e quando lia Julio Verne - Aqui vemos Santos=Dumont sonhando em voar no Albatroz, do fictício Robur de Julio Verne. A direita Henrique Dumont faz de Santos=Dumont um homem rico


Esta carta me transporta aos dias mais felizes de minha vida, quando, à espera de melhores oportunidades, eu me exercitava construindo aeronaves de bambu, cujos propulsores eram acionados por tiras de borracha enroladas, ou fazendo efêmeros balões de papel de seda.

Cada ano, no dia 24 de junho, diante das fogueiras de São João, que no Brasil constituem uma tradição imemorial, eu enchia dúzias destes pequenos "mongolfiers" e contemplava extasiado a ascensão deles ao céu.

Nesse tempo, confesso, meu autor favorito era Júlio Verne. A sadia imaginação deste escritor verdadeiramente grande, atirando com magia sobre as imutáveis leis da matéria, me fascinou desde a infància. Nas suas concepções audaciosas eu via, sem nunca me embaraçar em qualquer dúvida, a mecânica e a ciência dos tempos do porvir, em que o homem, unicamente pelo seu gênio, se transformaria em um semideus."

Alberto Santos=Dumont nasceu no dia 20 de julho de 1873 em Cabangu, no Município de João Aires, próximo à cidade de Santos=Dumont (antiga Palmira), no Estado de Minas Gerais. Desde pequeno gostava de dirigir maquinas e fazer pequenas invenções, aos sete anos de idade dirigia os locomóveis da fazenda e aos doze seu pai autorizou-o à dirigir a locomotivas Baldwin. Consertava a máquina de costura de sua mãe e acabou fazendo manutenção dos separadores de café da fazenda.

Quanto a fortuna que tornou a vida de inventor viável, bem aqui também o aviador relata com suas próprias palavras...

“tudo aconteceu quando ainda era jovem, a meu pai, o senhor Henrique Dumont, não passara despercebida a minha Irresistível paixão pela navegação aérea, levou-me ao cartório do seu tabelião, e me concedeu a escritura de emancipação, aos 18 anos de Idade. Conduziu-me após ao seu escritório, depôs-me nas mãos títulos no valor de muitas centenas de contos, dizendo-me:


- Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital.

Tenho ainda alguns anos de vida; quero ver como você se conduz; vai para Paris, o lugar mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se se faz um homem; prefiro que não se faça doutor; em Paris, com o auxilio dos nossos primos, você procurará um especialista em Física, Química, Mecânica, Eletricidade, etc. estude estas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo esta na Mecânica. 

Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver, eis aqui o meu presente, estou te dando o futuro.

Seguindo sua recomendação não me fiz doutor...”

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